13/09/2017

begin again: capítulo 2


Hoje

São sete da manhã, e a luz do sol que irrompe pela janela do nosso quarto está tingida por um pálido laranja-rosado. Sento-me na beira da nossa cama king size observando meu marido vestir o terno, pintando um sorriso que só finge ser meu.
A lâmpada do teto brilha amarelada, e a luz reflete de seu cabelo como um halo pálido em torno de sua cabeça.
Basta passar os olhos rapidamente pelo nosso quarto para sentir a influência masculina. Pisos de madeira escura que são lindos, mas congelam meus pés nas manhãs de inverno. Paredes pintadas num tom frio de verde-claro. Persianas de madeira pálida enquadram as janelas de guilhotina que ele havia restaurado cuidadosamente.
Embora ele tenha afastado as coisas para criar espaço suficiente para me encaixar, em essência, este quarto ainda é o quarto dele. A casa dele. Não que eu tenha trazido comigo algo que valesse a pena colocar no lugar das coisas dele. Ele me acolheu pobre, no fundo do poço como se eu fosse outra barganha.
Me poliu até eu ficar brilhante e reluzente.
– Vou tentar chegar em casa por volta das seis. – Simon enfia as abotoaduras de prata pelas fendas no punho da camisa azul oxford. – Prometi à Elise que chegaríamos cedo à galeria.
Elise é sua única filha. Eu deveria pensar nela como minha enteada, eu acho, mas, com 27 anos, ela é apenas dois anos mais nova do que eu. É difícil sentir qualquer coisa diferente de ambivalência quando Elise me olha de nariz empinado, um nariz de formato perfeito, toda vez que cruzo a porta. Mesmo assim, ela é sempre educada, sempre comedida e esconde sua antipatia por mim tanto quanto possível. Simon e a ex-mulher a criaram bem.
– Você esqueceu sua gravata. – levanto-me e vou atrás dele. Envolvendo a seda azul no pescoço, dou um nó perfeito e depois dou batidinhas com os dedos estendidos. Simon não diz nada. Simplesmente olha para mim com seus olhos castanhos-chocolate, o que faz com que eu me pergunte se ele está esperando um beijo meu. Beijo-o de qualquer forma, pressionando os lábios suavemente contra sua bochecha. Seu rosto fica arredondado quando o sinto sorrir contra minha boca.
– Você deveria usar aquele vestido que eu comprei para você no mês passado. Aquele com alças prateadas.
Confirmo com a cabeça, sem me preocupar em lembrá-lo de que as alças, na verdade, são douradas. Sei que ele não se importa. Ele simplesmente gosta quando eu me visto bem, não importa com que cor. Gosto quando ele fica feliz, pois torna a vida mais fácil, tanto a dele quanto a minha, e faço tudo para que seja assim.
Quando ele sai, carregando uma pasta cheia de papéis os quais leu durante toda a noite de ontem, corro para o chuveiro e deixo a água quente lavar os restos finais do sono. Depois visto meu jeans velho, uma camiseta bem usada e sigo para o metrô. Sempre está lotado a essa hora do dia. Vou me espremendo através da parede de corpos e entro em um trem. Respiro fundo quando sou empurrada contra uma menina vestida com uniforme escolar. Mostro um sorriso de desculpas. Ela revira os olhos e desvia o olhar.
Esta é a linguagem do metrô. Os seres humanos não foram feitos para viver em tamanha proximidade. Não aprendemos a nos comunicar em situações em que somos constantemente bombardeados por sensações e emoções. Tememos o desconhecido e odiamos quando ele é pressionado contra nosso corpo. Ou pelo menos eu odeio.
São quase nove horas quando entro na clínica e subo a escada. Selena, uma das conselheiras, levanta os olhos de onde está sentada, atrás de sua mesa, e me faz um aceno rápido. Está segurando um telefone na outra mão, falando rapidamente no bocal. Retribuo o sorriso. Selena é uma das minhas amigas mais próximas aqui. Nos conhecemos quando comecei a frequentar a clínica. Sempre que me sinto para cima ou para baixo, ela é a primeira pessoa com quem quero conversar.
Selena cobre o telefone e movimenta os lábios para mim, sem emitir som:
– Daisy MacArthur.
Não precisa dizer mais nada. Daisy é uma paciente que frequenta a clínica, entre idas e vindas, há dois anos. Ela teve três recaídas desde que cruzou aquela porta pela primeira vez. Cada vez é pior. 
Sinto o estômago despencar.
– E a Charlotte? – pergunto.
Selena dá de ombros, fazendo com que me sinta pior. Charlotte tem apenas oito anos de idade. Entra e sai do serviço de assistência social desde que era bebê. O motivo pelo qual Daisy entrou na clínica, antes de mais nada, foi tentar recuperar a guarda da filha. E funcionou. Ela é uma dependente, mas não há dúvida de que ama a filha.
Eu também amo a filha dela. Talvez demais. Mas Charlotte viveu uma vida tão dura em seus poucos anos que não me contenho; sinto um instinto protetor com relação a ela.
Selena finalmente desliga o telefone.
– Você tem espaço para mais uma criança no clube depois da escola?
Pelos últimos quatro anos, mantenho um clube vespertino para filhos de dependentes químicos, enquanto os pais fazem terapia em grupo. Temos um tema diferente a cada dia. Música às segundas-feiras, artesanato às terças, filmes às quartas. Quinta-feira é arte. Charlotte adora. Tem uma habilidade inata para o desenho, e nós a incentivamos a expressar seus sentimentos no papel.
– Claro – concordo com a cabeça. – Mas hoje sou só eu. – até agora, essa aula era dada por uma aluna de Arte na universidade. Agora ela se formou e estou à procura de um substituto, mas não é fácil. Não temos recurso para pagar nada a eles, e nem todo mundo consegue trabalhar com crianças traumatizadas e às vezes violentas. É necessário um tipo especial de pessoa.
– Sem sorte na faculdade? – Selena me lança um olhar compreensivo.
– Sem sorte. Vou ter de ir até Elise com um chapéu para pedir esmolas. –  faço uma careta. Selena a reflete de volta para mim e me faz rir. Ela conhece bem Simon e Elise. Todo mundo na clínica conhece, já que ele é um dos nossos maiores benfeitores. Foi assim que o conheci, em nosso evento de gala anual para angariar fundos, há quatro anos.
– Bem, antes de você rastejar, vamos tomar uma xícara de chá.
No meio da tarde o micro-ônibus chega, trazendo as crianças para o clube depois da escola. Arrumei a sala de aula com tintas e pincéis. As mesas estão cobertas com grandes folhas de desenho e pranchetas. Todo o equipamento foi doado por várias fontes. Sou eu quem sai implorando. Selena fala que é minha encenação de Oliver Twist. Sempre estou pedindo mais.
Uma chuva de crianças entra na sala, tagarelando sem parar. Discutem sobre onde vão se sentar, acotovelando-se para tirar uns aos outros do caminho. É tudo numa boa. Charlotte é a última a entrar. Ela arrasta os tênis pelo chão de ladrilhos e o solado faz um ruído estridente. Seu cabelo negro está se soltando do rabo de cavalo bagunçado. Tento conter o impulso de abraçá-la; ela não gosta de estar em evidência no grupo.
Em vez disso, sorrio suavemente e dou um puxãozinho em seu cabelo.
– Oi.
– Olá. – O sorriso dela é quase genuíno. Puxo seu cabelo novamente, mas desta vez ela ri. É como o sol saindo de trás de uma nuvem. Seus olhos disparam ao redor da sala como se ela estivesse se certificando de que não há ninguém ouvindo. – Ela está aqui?
Faço que sim.
– Ela veio esta tarde.
Uma expressão de alívio passa sobre seu rosto de oito anos de idade. Daisy foi enviada à clínica assim que recebeu alta do hospital, depois de ter levado pontos no ferimento que sofreu na cabeça quando desmaiou na rua.
Agora, ela é toda nossa. Um passo em frente e dois passos para trás. É como uma dança fatal.
Charlotte fica ao meu lado.
– Vou para casa hoje à noite?
Meu coração dói com o jeito casual da pergunta. Ela foi transferida de um lugar para outro tantas vezes que realmente não vê como isso é errado. Orfanatos, lares adotivos, nós. Mesmo sendo uma dependente problemática, Daisy é a única constante na vida de Charlotte.
– Acho que sim. Vou perguntar à Selena quando tudo estiver resolvido. Desta vez não foi tão ruim quanto da última. – não posso acreditar que estou discutindo com uma menina de oito anos sobre as aventuras da mãe dela com heroína. A pobre criança viu coisas que ninguém deveria ver. Ela amadureceu antes de seu tempo.
– Tá bom. – Charlotte caminha até uma mesa e pega um macacão. Poucos minutos depois, ela está pintando. Uma bela paisagem verde salpicada com árvores e flores, debaixo de um céu um pouquinho azul demais. Eu me pergunto se é seu refúgio feliz.
Eu costumava ter um refúgio feliz durante minha passagem pelo aconselhamento. Uma praia de areias brancas com o mais azul-celeste dos oceanos, lambendo docemente a costa. A cor dos olhos dele. Faz um tempo que não penso nisso. Não precisava. Agora tenho Simon. Ele é meu refúgio feliz. Meu protetor. Ele me ama, e sou grata. Tenho consciência do quanto isso soa ruim. Em tempos de paixão instantânea e desejos alimentados por luxúria, a nossa relação é à moda antiga, de um jeito teimoso. Mas já experimentei a paixão e isso quase me matou.
Às cinco, as crianças começam a ir embora aos poucos. Algum tempo depois, Charlotte e eu somos as únicas que restam. Sento-me no canto de sua mesa e admiro sua pintura. A antiga professora de Arte ensinou tantas técnicas enquanto estava com a gente que a pintura de Charlotte parece avançada para a idade dela. Fico contente por ter ligado para Elise mais cedo, Charlotte fica em seu melhor na aula de arte. Esperemos que Elise possa encontrar para nós uma pessoa nova em residência artística.
A porta faz um ruído e Daisy MacArthur entra. Está com uma aparência péssima. Seu cabelo escuro cai em mechas sem vida por seu rosto pálido. O pior é sua expressão apreensiva. Capto seu olhar e tento dar um sorriso tranquilizador. Charlotte ergue os olhos arregalados, seus lábios cheios se entreabrem. Então ela se levanta e corre para a mãe. Seu choro ecoa pelo silêncio da sala. Ela se lança sobre Daisy, quase derrubando-a. Daisy a pega e a abraça apertado, enterrando o rosto no cabelo da filha.
– Sinto muito, querida – murmura de novo e de novo. É como um mantra.
– Achei que você tivesse morrido. – a voz de Charlotte é um lamento. Meus olhos brilham ao vê-las, é de partir o coração. Nenhuma menina de oito anos deveria encontrar a própria mãe inconsciente fora de seu apartamento, coberta de sangue e mal respirando.
– Está tudo bem. Estou aqui, estou aqui – Daisy sussurra em seu cabelo. – Sinto muito.
Sinto-me como uma voyeuse pervertida. Mal consigo me permitir assistir. Minha garganta se fecha e meu peito aperta, porque sei que isso nunca vai ficar melhor. Daisy sempre vai ser uma viciada e Charlotte sempre vai ser a filha de uma viciada. Nenhuma quantidade de terapia vai mudar esse fato. Quando chego em casa, não consigo parar de pensar nelas. O vício, o medo, o ciclo interminável. Eu mesma cheguei muito perto de ser uma Daisy. Sei, por experiência própria, que drogas matam. Mas é a forma como mutilam, destruindo mentes e corações, que é o mais difícil.

***

Simon chega em casa pouco depois das seis. Ele me agarra pela cintura e me beija firme antes de ir para o chuveiro, e isso me choca. Seu cabelo grisalho está úmido da chuva que começa a cair, as palmas das minhas mãos ficam molhadas quando toco sua cabeça, tentando entender o que deu nele.
Não que eu esteja reclamando. Aceito carinho onde quer que possa encontrar. Nesse aspecto, sou volúvel. Enquanto ele toma banho, passo um pouco de maquiagem e prendo o cabelo para tirá-lo do rosto. Quando ponho meu vestido azul-escuro, pareço uma Demi diferente da que trabalha na clínica e fica coberta de tinta. Elegante e sofisticada. Até mesmo equilibrada. Por fora, pelo menos.
É um disfarce que consegui aperfeiçoar ao longo do tempo, com a ajuda do treinamento paciente de Simon. Quando nos conhecemos, eu estava com um vestido preto barato da Topshop, sentindo-me um tanto fora de lugar entre vestidos de mil libras e blazers de noite. Talvez por isso eu tenha passado a maior parte da noite me escondendo. Se Simon não tivesse me encontrado encostada na parede dos fundos, enquanto ele tentava fazer uma ligação telefônica, fico em pânico só de pensar onde eu estaria agora.
Perdida. Sozinha. Como estive naqueles cinco anos antes de nos conhecermos. Simon olha para cima e encontra meus olhos. A pele ao redor dos seus enruga quando ele me mostra um sorriso rápido. Eu o vi olhar para Elise da mesma forma. Ele é apaixonado por nós duas, fica orgulhoso de nos levar a restaurantes elegantes e a jantares de elite. No entanto, Elise é mais polida do que eu, afinal, começou 21 anos antes, é uma especialista enquanto eu sou uma novata. Ainda sou um trabalho em andamento e provavelmente desaponto Simon com frequência demais. Ele não pede muito em troca de tudo o que me dá. Tenho um marido que me ama, que cuida de mim, que me acalma quando tenho pesadelos e faz com que me sinta protegida. Em troca, tento me comportar do jeito que ele quer que eu me comporte.
Não uso drogas, não fumo, bebo de vez em quando. Tenho um emprego que ele tolera como um hobby. Contanto que não afete nosso casamento. Isso eu lhe prometi desde o início.
Cuidamos um do outro. Em geral, funciona.
– Você está com batom nos dentes. – ele soa divertido.
Faço careta e olho no espelho, esfregando o escarlate dos meus dentes à mostra com a ponta do dedo.
– Eu juro, eu não deveria sorrir ou falar quando estou usando esse negócio.
– Você é bonita demais para não sorrir.
Então, é claro, eu sorrio. Ele tem a capacidade de me manter calma e equilibrada. Na noite em que nos conhecemos, ele me viu assim que terminou a ligação. Eu estava parada ao lado das lixeiras, meus dedos ao redor de uma taça cheia de vinho, e ele se aproximou de mim como se eu fosse um cervo assustado. Quando falou, manteve a voz baixa.
– Você está bem?
Até então, eu estava sofrendo de fobia social grave e não conseguia falar. Apenas afirmar com a cabeça.
– Não está parecendo – disse ele.
– Eu não gosto de festas. Tem gente demais. Muita coisa acontecendo. – minha voz falhava enquanto eu falava. Ele se aproximou mais um passo, eu recuei.
– Você é claustrofóbica?
Dessa vez, sacudi a cabeça.
– Não, só não sei lidar bem com aglomerações. – na época, eu enfrentava essa dificuldade já fazia cinco anos. Eu estava trabalhando nela.
– Então, por que você veio? – a pergunta não foi mal-intencionada. Ele parecia realmente confuso.
– Acabei de começar a trabalhar na clínica e não podia suportar a ideia de contar a eles. Eu não queria que pensassem que eu estava completamente louca – ri, mas, ainda assim saiu bastante áspero.
– Você gostaria que eu chamasse um táxi para você? Ou eu poderia levá-la para casa, se você preferir.
Meus olhos marejaram diante da gentileza. Aquele homem, que parecia ter idade suficiente para ser meu pai, estava sendo mais doce para mim do que qualquer pessoa havia sido em muito tempo. Mais do que meus próprios pais, que, àquela altura, tinham praticamente me deserdado.
– Não posso ir embora ainda. Alguém vai perceber.
Ele sorriu e foi a primeira vez que eu percebi o quanto ele era bonito, apesar da idade.
– Que tal você vir e se sentar comigo? Posso segurar sua mão e conversar para ajudá-la a sair de qualquer ataque de pânico. Eu protejo você.
Havia sido o começo. Ele fez tudo o que prometeu. Me acompanhou durante toda a noite, segurou minha mão quando comecei a tremer. Ele ainda conseguiu me persuadir a cair na pista de dança uma vez. Quando me deixou em casa naquela noite, sem demonstrar quase reação nenhuma ao ver o casebre arruinado onde eu morava, ele pegou meu telefone e prometeu me ligar no dia seguinte.
Ele era um homem de palavra. Sempre foi. O que falta em paixão, ele compensa em lealdade.
Ao longo dos seis meses seguintes, ele me cortejou assiduamente. Fui mimada com flores e presentes, ele me levou a belos restaurantes e a galerias de arte luxuosas. Mas, embora eu gostasse de todas essas coisas, era a maneira como ele me tratava o que eu mais gostava. Tomava as decisões e cuidava de mim como se eu fosse sua segunda filha.
Pela primeira vez em muito tempo, me senti feliz. Segura. Em seis meses eu estava passando mais tempo na casa dele do que na minha. Nós nos casamos dois anos depois.
Não tive um ataque de pânico desde então.

esse capítulo já é nos dias de hoje e mostrou um pouco da vida da Demi e do Simon.
será que a Daisy vai conseguir se recuperar? tem semi na história <3
a Charlotte vai ser bem importante na vida da Demi e do Joseph também.
em falar no Joseph, ele irá aparecer no próximo capítulo e já vai ter encontro dos dois.
me digam o que acharam nos comentários, ok?
espero muito que vocês gostem, volto em breve.
respostas do capítulo anterior aqui.

4 comentários:

  1. Sem palavras.. Eu estou realmente amando e ansiosa com essa nova fic, doida para ter um novo reencontro de jemi e saber o que exatamente aconteceu no passado para os dois se afastarem.. Capítulos perfeitos como sempre. Você arrasa.

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    1. Que bom que está gostando amor, isso é muito importante para mim e fico feliz.
      O encontro deles vai ser daqueles de muitas lembranças hahaha.
      Muito obrigado pelo o carinho, vou postar novo capítulo hoje.
      Beijos, Jessie.

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  2. Amei o capitulo....
    To ansiosa pra ver o reencontro de Jemi.
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    1. O reencontro vai ser aqueles cheio de lembranças. Fico muito feliz que tenha gostado amor.
      Vou postar novo capítulo hoje.
      Beijos, Jessie.

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